quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Diretor se propõe a revelar 'realidade' do seu país no século 21


INÁCIO ARAUJO - CRÍTICO DA FOLHA


Há algo de bem tradicional no filme "Leviatã", dirigido por Andrey Zvyagintsev: em 2014, ele propõe algo como nos revelar a "realidade russa" do século 21. Mas hoje acreditamos que a "realidade" não é mais do que isso, ou seja, uma palavra entre aspas: uma construção.
Ainda assim, "Leviatã" ganhou um prêmio de melhor roteiro em Cannes pela história de Kolya, o homem que enfrenta praticamente sozinho o corrupto governo da pequena cidade em que vive, no norte da Rússia.
Kolya vive com seu filho e a mulher (que não é a mãe do garoto) em um sítio que o prefeito acaba de desapropriar a preço de banana. A Justiça (que o político também controla) não recebe os apelos de Kolya. Todas as esperanças estão depositadas no amigo e advogado Dimitri, que possui um dossiê bem comprometedor sobre o prefeito. Mas este tem algumas cartas na manga de que lançará mão.
A tragédia de Kolya começa a se desenhar plenamente quando o amigo advogado transa com sua mulher. A princípio este dado parece introduzido um pouco a fórceps na trama. Aos poucos, percebemos que é, na verdade, o dado central.
Porque, em princípio, o que pretende nos mostrar Zvyagintsev é uma Rússia corrupta e autoritária, mais descendente do que sucessora do Estado soviético que a precedeu. Não por acaso aparecem ali retratos de Lênin, Brejnev, Putin etc.
Mas o que interessa de fato, aquilo que está acima da "realidade russa", é a realidade russa que podemos apreciar. Não apenas a paisagem belíssima, mas os tristes conjuntos habitacionais do tempo do comunismo, o hotel interiorano, o modo de vida (as trabalhadoras no ônibus, por exemplo, mas também as bebedeiras homéricas) etc.
E, sobretudo, as relações pessoais, tão deterioradas quanto o Estado é controlado por máfias. Talvez o aspecto mais original do filme venha da acusação (algo velada, mas ainda assim) da participação ativa da Igreja Ortodoxa Russa nessa esbórnia.
Essa Rússia que o autor vê quase como uma doença milenar ganha aqui um relato vivo e bem copioso. Se não adere ao cinema soviético, nem ao misticismo conservador, esse cinema bem laico parece buscar apoio mais na literatura pontuada por excessos da Rússia do século 19.

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