quinta-feira, 19 de março de 2015

Opinião: Dos czares a Stálin e Putin, poder ditatorial é hereditário



A Rússia é o país onde fatos e versões se chocam. Atenção, não falei em Rússia atual ou antiga. Os socos e pontapés entre a camada divulgada da história e o, digamos, pré-sal da realidade ocorrem desde sempre.
Talvez o czar Ivan, o Terrível, tão lindamente descrito no filme "Ivan", de Pavel Lounguine, tenha tido algo a ver com isso.
Das torturas a que submeteu seus súditos, muito menos se soube na época -e pouco se revelou depois.
Da mesma forma, o triste fim do czarismo só teve exumação recente, despojos eventualmente identificados -e a princesinha caçula, que só reapareceu no livro delicioso de John Boyne, "O Palácio de Inverno".
Sem falar nos poucos gritos e muitos sussurros ("Sussurros" é o título do livro de Orlando Figes, que descreve a URSS com precisão) de todo o período sob comando e desmando de Joseph Stálin.
Aqui chegamos ao que aparentemente interessa: à hereditariedade ditatorial do poder russo. O qual permite que o que se faça e o que se diga que fez tenham remota relação.
O que autoriza que as autoridades do governo, suspeito do assassinato do opositor Boris Nemtsov, possam se dar ao luxo de deter, acusar e levar à confissão dois homens da região do Cáucaso de quem não se tinha ouvido falar até 7 de março, uma semana após a morte.
Vocês vão dizer que todo poder autoritário funciona assim. E mais: vão eventualmente comparar o presidente Vladimir Putin a Hitler, como muitos vêm fazendo. Tudo com argumentações cheias de razão.
Acontece que a razão, a sensatez, o comum pouco valem no complexo magma da alma russa.
Da mesma forma que as autoridades negaram de pés juntos estarem ajudando (ou incitando) os separatistas na Ucrânia e também fingiram nem ter tentado congelar os ucranianos no último inverno, fechando os oleodutos que abastecem o país, é muita ingenuidade acreditar que uma dupla de pobres coitados (com posteriores suspeitas cicatrizes de tortura), supostamente enviados por algum fanático religioso, tivesse a
audácia de fazer aquilo tudo a 200 metros do Kremlin. E ainda acertar o alvo.

Quem mata na porta de casa é por conhecer o terreno, diz a sabedoria presidiária.
Em "Leviatã", o recente e premiado filme de Andrey Zvyagintsev, todo o habitual jogo de influência, assédio, associações oportunistas (como entre o prefeito da cidade e o líder religioso, ou entre a esposa adúltera e o advogado) de qualquer governo corrupto é desenterrado.
Mas além disso, e daí talvez seu sucesso, revela-se o lado infantil e permissivo daquele povo, que gosta de ironizar: Nie lzia, no mojno -"é proibido, mas pode".
Como se os russos, apoiados pelo fato metafórico de viverem pelo menos um século atrás do restante da Europa, fossem eternas crianças.
As quais, por mais arteiras e infratoras que sejam, confiam em seu próprio poder encantatório. E os pobres ocidentais -os supostos adultos- acabam desarmados e perplexos, sem saber punir tamanha ousadia e sedução. Mas a superfície da neve continua branca e intacta.

VIVIEN LANDO é diretora cênica de ópera e escritora, publicou "Balalaicase Mandolinas" (Objetiva), sobre a sua estadia na Rússia 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Diretor se propõe a revelar 'realidade' do seu país no século 21


INÁCIO ARAUJO - CRÍTICO DA FOLHA


Há algo de bem tradicional no filme "Leviatã", dirigido por Andrey Zvyagintsev: em 2014, ele propõe algo como nos revelar a "realidade russa" do século 21. Mas hoje acreditamos que a "realidade" não é mais do que isso, ou seja, uma palavra entre aspas: uma construção.
Ainda assim, "Leviatã" ganhou um prêmio de melhor roteiro em Cannes pela história de Kolya, o homem que enfrenta praticamente sozinho o corrupto governo da pequena cidade em que vive, no norte da Rússia.
Kolya vive com seu filho e a mulher (que não é a mãe do garoto) em um sítio que o prefeito acaba de desapropriar a preço de banana. A Justiça (que o político também controla) não recebe os apelos de Kolya. Todas as esperanças estão depositadas no amigo e advogado Dimitri, que possui um dossiê bem comprometedor sobre o prefeito. Mas este tem algumas cartas na manga de que lançará mão.
A tragédia de Kolya começa a se desenhar plenamente quando o amigo advogado transa com sua mulher. A princípio este dado parece introduzido um pouco a fórceps na trama. Aos poucos, percebemos que é, na verdade, o dado central.
Porque, em princípio, o que pretende nos mostrar Zvyagintsev é uma Rússia corrupta e autoritária, mais descendente do que sucessora do Estado soviético que a precedeu. Não por acaso aparecem ali retratos de Lênin, Brejnev, Putin etc.
Mas o que interessa de fato, aquilo que está acima da "realidade russa", é a realidade russa que podemos apreciar. Não apenas a paisagem belíssima, mas os tristes conjuntos habitacionais do tempo do comunismo, o hotel interiorano, o modo de vida (as trabalhadoras no ônibus, por exemplo, mas também as bebedeiras homéricas) etc.
E, sobretudo, as relações pessoais, tão deterioradas quanto o Estado é controlado por máfias. Talvez o aspecto mais original do filme venha da acusação (algo velada, mas ainda assim) da participação ativa da Igreja Ortodoxa Russa nessa esbórnia.
Essa Rússia que o autor vê quase como uma doença milenar ganha aqui um relato vivo e bem copioso. Se não adere ao cinema soviético, nem ao misticismo conservador, esse cinema bem laico parece buscar apoio mais na literatura pontuada por excessos da Rússia do século 19.