Críticos do governo reforçam barricadas para evitar ação da polícia em prédios públicos ocupados
DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS
O presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, aceitou ontem participar de uma mesa-redonda com a oposição para tentar pôr fim aos protestos que paralisam parte da capital, Kiev, há duas semanas.
A reunião foi sugerida pelo primeiro presidente da Ucrânia independente, Leonid Kravchuk, e deve ser realizada hoje, com a presença de todos os chefes de Estado que o país já teve desde que se separou da União Soviética, em 1991.
A abertura ao diálogo, porém, não foi suficiente para diminuir a tensão no país, já que ocorreu no mesmo dia em que as forças policiais ucranianas se posicionaram para dispersar centenas de manifestantes que ocupam ruas e prédios públicos da cidade.
Dezenas de agentes da tropa de choque do Ministério da Defesa foram deslocados para o centro da Kiev, a um dia do fim do prazo dado pelo governo para que os manifestantes deixem o local.
Diante do temor de uma ação violenta da polícia, algumas pessoas deixaram a Prefeitura da cidade, o principal prédio ocupado.
Os que ficaram montaram barricadas e se armaram com pedaços de pau, rolamentos e óleo de girassol para fazer os agentes escorregarem se tentarem entrar no prédio.
"Não vamos deixar ninguém entrar no prédio, mas esperamos que não aconteça um banho de sangue", disse um dos organizadores da ocupação, Vasyl Khlopotaruk.
A crise política na Ucrânia começou com a recusa do presidente Yakunovich de assinar um acordo com a União Europeia, em novembro.
Isso irritou a parcela da população que é favorável a uma maior aproximação com o bloco e que acusa o governo de privilegiar a relação com a Rússia.
Na noite de anteontem, um protesto reuniu mais de 500 mil pessoas no centro de Kiev, onde ficam prédios públicos importantes, como o da Presidência e o do Parlamento.
Pouco depois do amanhecer de ontem, cerca de 300 pessoas permaneciam na praça da Independência, centro dos protestos, apesar da neve.
"Fazemos um chamado para que as pessoas fiquem onde estão e, de forma pacífica, sem agressão, defendam o seu direito de viver num país livre", afirmou um dos líderes da oposição, o campeão mundial de boxe Vitaly Klitschko.
O presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, que conversou com Yanukovich por telefone no domingo, pediu que as autoridades não façam uso da violência.
"Aqueles jovens nas ruas da Ucrânia, sob temperaturas congelantes, estão escrevendo uma nova narrativa para a Europa", disse ele.
Protestos ocorrem por antagonismo leste-oeste, não pela crise econômica
ELENA LAZAROUDANIEL EDLERESPECIAL PARA A FOLHA
Os recentes protestos na Ucrânia foram impulsionados pela reação pública à decisão do governo em não assinar o Acordo de Associação (AA) com a União Europeia (UE). A expectativa era que este se concretizasse na cúpula da Parceria Oriental em Vilnius, capital da Lituânia, semana passada.
Enquanto negociações para AAs --documentos que estabelecem o formato e as regras para integração e liberalização comercial-- avançaram com Geórgia e Moldova, a Ucrânia adiou, por enquanto, uma aproximação à UE.
Observadores traçam paralelos equivocados destes protestos com outras manifestações que ocorreram mundo afora.
Tais análises apontam para o descontentamento com as instituições políticas e as elites que governam o país há mais de 20 anos. É certo que há alto grau de insatisfação com a fragilidade da democracia e dos canais de representação, mas é o conteúdo da política que está no centro do debate, não o regime.
Gritando "Ucrânia, vá para a Europa! Yanukovich, vá para o inferno!" os manifestantes de Kiev estão escrevendo um novo capítulo de uma disputa que tem marcado o país desde a independência, em 1991. Tal disputa gera uma postura pendular, que ora aproxima a Ucrânia da UE, ora a reinsere na esfera de influência russa.
Desde 1991, as mudanças no governo representam a divisão existente na sociedade e no território. A parte ocidental do país tem vínculos históricos com a Europa, o que se reflete na cultura local e nas opiniões políticas.
Laços fortes com a Rússia são vistos como atentados à autonomia e remontam ao autoritarismo de Moscou no período soviético. O processo de independência e a Revolução Laranja, que levaram, respectivamente, à ascensão dos pró-europeus Kravchuk e Yushchenko, tiveram grande apoio no oeste. Já a parte oriental, onde há uma concentração da diáspora russa, ressente-se das ações tomadas por governos europeístas e apoiou o presidente Yanukovich.
Nesse sentido, não é surpreendente que após a vitória de Yanukovich, em 2010, o legado da Revolução Laranja tenha sido revertido e alguns de seus líderes presos.
As decisões do governo sobre o acordo com a UE e os protestos nas cidades ocidentais devem ser vistos, portanto, à luz do profundo antagonismo da sociedade, e não somente como resultado da corrupção e da crise econômica.