terça-feira, 7 de outubro de 2014

Putin recompensa amizade com fortunas

Reportagem de Steven Lee Myers, Jo Becker e Jim Yardley

SÃO PETERSBURGO, Rússia - Semanas depois de o presidente Vladimir Putin anexar a Crimeia, um órgão regulatório de Moscou conhecido como o Conselho de Mercado se reuniu para discutir o mercado nacional de eletricidade ao atacado.
Trata-se de um negócio colossal, que representa 2% do PIB russo, e uma rica fonte de taxas para o banco que há muito tempo detém a exclusividade com o setor.
Naquele dia de abril, sem aviso prévio ou discussão pública, o conselho votou a transferência das transações com o mercado elétrico para o banco Rossiya, uma instituição menor que não tinha a capacidade de absorver o trabalho de imediato.
Para o banco Rossiya, foi uma dádiva, prevista para lhe render US$ 100 milhões (R$ 250 milhões) ou mais em comissões anuais. Mas era apenas o começo. De repente, estatais, governos locais e até a Frota do Mar Negro, na Crimeia, transferiram suas contas para o banco.
A sorte "caída do céu" para o Rossiya estava transmitindo uma mensagem. Em março, os EUA tinham transformado o banco em um dos principais alvos de sanções, isolando-o do sistema financeiro global. Agora o Kremlin estava reagindo.
A corrida para reforçar o banco Rossiya, que hoje tem ativos de quase US$ 11 bilhões (R$ 27,5 bilhões), se deu pela mesma razão que os EUA e mais tarde seus aliados europeus o puseram na lista das sanções: seu status privilegiado de "banco pessoal", segundo a descrição de Washington, do círculo interno de Putin.
O Rossiya é símbolo do modo em que o capitalismo clientelista à moda de Putin transformou os partidários fiéis do presidente em bilionários cuja influência sobre a economia vem ajudando o presidente a conservar seu domínio férreo do poder.
Agora as sanções põem à prova a resiliência de seu sistema econômico e político. Ao mesmo tempo em que Obama argumenta que as medidas contra o círculo interno de Putin estão onerando a economia russa e os magnatas que a dominam, muitos ironizam as sanções, descrevendo-as como mera irritação de pouca monta.
"Ele deu e ele tirou", disse Mikhail Kasyanov, que foi primeiro-ministro no primeiro mandato de Putin. "Eles dependem de Putin, e Putin depende deles."
"Uma variedade de amigos"
Quando o último líder soviético, Mikhail Gorbachev, começou a permitir experimentos com o empreendimento privado, na década de 1980, São Petersburgo ainda era Leningrado, uma sombra pobre da capital czarista que foi no passado.
Um dos primeiros a aderir à livre iniciativa foi Yuri Kovalchuk, do Instituto Físico Técnico Ioffe. Ele fundou uma empresa para transformar o trabalho científico em produtos comercialmente viáveis.
Outro foi Gennady Timchenko, ex-funcionário soviético que fez uma cooperativa para exportar produtos de uma refinaria no mar Báltico. O que aproximou Putin deles foi a queda do Muro de Berlim.
Depois de cinco anos como agente da KGB na Alemanha Oriental, Putin ingressou num novo comitê de relações econômicas externas e, mais tarde, na prefeitura de São Petersburgo, que trabalhava com empreendedores emergentes, regulando o comércio e distribuindo contratos para obras e serviços na cidade.
Alguns dos negócios fechados provocaram controvérsia, especialmente um acordo selado durante o inverno de fome de 1991-92 envolvendo a troca de óleo, metal e outros produtos por alimentos.
Dos alimentos negociados no acordo, virtualmente nada se concretizou, e um comitê da Câmara de Vereadores tentou, mas não conseguiu, depor Putin.
Apesar de tudo, era visto como um gestor eficiente e discreto que ajudava empresários a superar a burocracia. Sua fluência no alemão era útil para os alemães que queriam se fixar em São Petersburgo.
Um destes era Matthias Warnig, ex-agente da Stasi, polícia secreta da Alemanha Oriental. Ele abriu um dos primeiros bancos estrangeiros da cidade, o Dresdner. Putin estava ao mesmo tempo formando novos amigos e deitando as bases de algo que evoluiria para se transformar no sistema capitalista patrocinado pelo Estado, que hoje é a base de seu poder.
"Era um ambiente favorável para a formação de uma gama tão grande de amigos", explicou Mikhail I. Amosov, ex-membro da Câmara de São Petersburgo.
Em muitos casos, contratos e bens eram distribuídos em acordos fechados com informações privilegiadas, muitas vezes sem licitação aberta ou transparente. "Tudo era decidido por contatos pessoais. Não gostávamos disso."
Um dos beneficiários era o banco Rossiya. Ele foi fundado em 1990 pelo Partido Comunista local, mas, com a queda da União Soviética, estava praticamente falido. Em dezembro de 1991, Kovalchuk e um grupo de amigos compraram o banco. Os investidores incluíam outros três membros do instituto -Victor Myachin, Andrei Fursenko e Vladimir Yakunin. De acordo com a imprensa, a prefeitura abriu contas grandes no banco e com isso o levantou.
Timchenko, o exportador de petróleo, ingressou no círculo do banco Rossiya como investidor; de acordo com a instituição, sua participação pertence a uma companhia que ele controla. Mais tarde, o alemão Warnig entraria para a diretoria do Rossiya.
E havia Sergei Roldugin, diretor da Casa de Música, uma academia de formação de músicos. Ele tinha conhecido Putin na década de 1970 e é padrinho da filha mais velha do atual presidente, Maria.
Seu investimento no banco comandado por homens próximos a seu velho amigo envolveu "muitas manipulações", em suas próprias palavras. Hoje o banco o cita como dono de 3,2% de suas ações. No papel, Roldugin tem uma fortuna de US$ 350 milhões (R$ 875 milhões).
O período de Putin em São Petersburgo terminou em 1996, quando seu chefe não se reelegeu. Então, Putin passou a receber ordens do presidente Boris Ieltsin.
E, quando Ieltsin inesperadamente o promoveu para primeiro-ministro e depois presidente interino, na véspera do Ano Novo de 1999, a sorte de muitos de seus amigos -e do pequeno banco deles- começou a mudar.
"Banco Rossiya, é isso"
Os ativos do banco Rossiya se multiplicariam por dez no segundo mandato de Putin (2004-2008). Um fator crucial para esse crescimento foi a capacidade do banco de comprar ativos antes pertencentes à estatal Gazprom.
Os negócios foram documentados em relatórios de Boris Nemtsov, um ex-vice-primeiro-ministro, Vladimir Milov, um ex-vice-ministro da Energia, e outros. Segundo a estimativa deles, "o valor total dos ativos drenados da Gazprom" foi de US$ 60 bilhões (R$ 150 bilhões). Um dos primeiros negócios envolveu uma das maiores seguradoras do país, Sogaz.
O Rossiya adquiriu o controle da Sogaz por cerca de US$ 100 milhões (R$ 250 milhões), segundo Nemtsov e Milov, que mais tarde avaliaram a empresa em US$ 2 bilhões (R$ 5 bilhões). "Putin disse 'o banco Rossiya, é isso'", Milov falou à "Forbes" russa.
A Sogaz tornou-se a seguradora preferencial de estatais como a Russian Railways, chefiada por Yakunin, e a gigante petrolífera Rosneft, já então comandada por Igor Sechin, que tinha sido vice de Putin em São Petersburgo.
A Sogaz também adquiriu 75% da Leader, que administrava o fundo de pensões da Gazprom, Gazfond, que movimenta US$ 6 bilhões (R$ 15 bilhões). O preço de compra foi US$ 30 milhões (R$ 75 milhões), menos que os lucros da Leader naquele ano.
Ao mesmo tempo, Kovalchuk, o presidente do banco, começou a formar um império que hoje controla alguns dos maiores jornais e emissoras de TV e rádio russos. "A primeira meta foi conquistar o controle da mídia", disse Roman Pivovarov, analista da mídia russa.
"Mas isso foi conseguido relativamente cedo. Portanto, o que estava em jogo o dinheiro. O quadro hoje é claro: a grande mídia pertence ao círculo de pessoas que controlam não apenas a política, mas a economia da Rússia."
Em 2008, o segundo mandato de Putin estava chegando ao fim, e o império de mídia do Rossiya lhe serviu como voz de apoio quando ele decidiu ser primeiro-ministro. Então, em 2012, Putin anunciou que concorreria a um terceiro terceiro mandato presidencial. Ninguém duvidou de sua vitória.
"Um banco médio"
No dia depois de Obama ter incluído o Rossiya na lista negra das sanções, Putin se reuniu com seu conselho de segurança nacional.
Informado de que 20 pessoas tinham sido submetidas a sanções -entre elas três membros do conselho de segurança, seus conterrâneos-, o presidente ironizou: "Deveríamos nos distanciar deles. Eles nos comprometem."
Quando ao Rossiya, ele disse: "Pelo que eu me lembre, é um banco médio. Não tenho conta nele, mas vou abrir uma na segunda."
Mais tarde ele pediu que seu salário oficial -de US$ 7.500 mensais (R$ 18.750)- fosse depositado na conta que abriu no Rossiya.
O gesto público do presidente, disse Kovalchuk em rara entrevista à televisão, valeu ao banco uma enxurrada de clientes, incluindo uma senhora velha e pobre que queria depositar suas economias.
Para uma instituição com ativos de bilhões de dólares, "essa idosa não significa nada em termos financeiros, mas o fato vale mais que qualquer investimento financeiro", disse Kovalchuk. "Existe um 'fator Putin', e é incondicional. O fato é que as pessoas sentem de que lado das barricadas os negócios se posicionam."
Os esforços de Putin para proteger o banco não foram apenas simbólicos. Ele instruiu o Banco Central a ajudar o dar assistência ao Rossiya, se fosse preciso.
Empresas energéticas estatais transferiram suas contas para lá, e os governadores de São Petersburgo e região mandaram as instituições estatais de suas jurisdições fazerem o mesmo. E em abril o Conselho de Mercado transferiu o negócio para o Rossiya.
Não é sabido por quanto tempo o governo poderá continuar a apoiar as instituições que enfrentam sanções. A economia russa já passava por dificuldades antes da anexação da Crimeia. O Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento previu que, com as sanções e do embargo de Putin sobre a importação de bens do Ocidente, a economia pode se contrair em 2015.
O governo anunciou que vai injetar US$ 6,6 bilhões (R$ 16,5 bilhões) em dois bancos estatais cujo acesso a capitais estrangeiros foi cortado. E a Rosneft, de Sechin, pediu um empréstimo de US$ 42 bilhões (R$ 105 bilhões).
Putin denunciou as sanções como ataques injustos contra pessoas que não exercem influência sobre a política externa russa.
"Sim, essas pessoas são minhas amigas, e tenho orgulho de ter amigos assim", declarou em um fórum econômico promovido em São Petersburgo em maio.
"Eles são patriotas verdadeiros, e seus negócios são orientados à Rússia. As sanções os prejudicaram? Sim. Mas eles são empreendedores experientes e trouxeram seu dinheiro de volta para a Rússia. Portanto, não é preciso preocupar-se demais com eles." NYT, 07.10.14
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